Milhões de brasileiros podem ser penalizados com o fim do auxílio emergencial

Estudo mostra que, com pandemia em pleno andamento e fim da ajuda financeira dada pelo governo, País deve ter este ano mais de 17 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 por dia; desigualdade, que caiu em 2019, deve voltar a subir

Douglas Gavras e Érika Motoda, O Estado de S.Paulo

Alternativa ao auxílio é remodelar programas
Morador da rua Meu Destino, Anderson cogita dar a casa como garantia em um empréstimo, para comprar comida; Hudson voltou a morar com os pais para enfrentar um câncer; Lucimar deixou o isolamento e vende máscaras na rua para sustentar o filho. Com o fim do auxílio emergencial no ano passado, e se nada for colocado no lugar para amparar os mais vulneráveis, até 3,4 milhões de brasileiros a mais, como eles, podem cair na extrema pobreza – sobrevivendo com menos de US$ 1,90 por dia (algo como R$ 10), a linha de corte definida pelo Banco Mundial.

De acordo com uma pesquisa do especialista em política social Vinícius Botelho, publicada pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), com isso, a pobreza extrema neste ano pode ser maior do que a verificada no País antes da covid-19.

Nesse cenário, o número total de pessoas na extrema pobreza chegaria a 17,3 milhões em 2021, segundo os conceitos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O aumento levaria o País ao pior patamar de pobreza desde o início da pesquisa, em 2012.

“Se nada for feito, a política social vai continuar com a mesma potência que em 2019, mas em uma realidade completamente diferente”, diz Botelho, ex-secretário dos ministérios da Cidadania e do Desenvolvimento Social. “Durante a pandemia, as pessoas perderam a renda do trabalho. Com o auxílio, essa queda foi compensada, mas, como não há alternativa para 2021, podemos cair em uma situação pior do que antes. É como se o Brasil tivesse feito um ‘voo de galinha’ na redução da pobreza.”

De 2012 a 2019, a variação das taxas de pobreza decorreu da dinâmica econômica – quando o País crescia, a pobreza era reduzida e vice-versa. No ano passado, no entanto, o auxílio emergencial (de cinco parcelas de R$ 600 e quatro de R$ 300) serviu para que a potência da política social aumentasse muito.

“O País já tinha muita gente na extrema pobreza, mas 2020 nos fez lembrar que esse problema precisava ser equacionado urgentemente. Só que o mesmo Brasil que fez um auxílio emergencial gigantesco virou o ano sem garantir o reajuste do Bolsa Família. Na verdade, pouca gente acreditava na criação de um programa novo”, diz Botelho.

Desigualdade
Um outro levantamento, do pesquisador Daniel Duque, do Ibre/FGV, aponta que a desigualdade deve aumentar quase 10%, por conta do fim do auxílio, e que 2020 deve ser um ano perdido na redução das diferenças sociais. O Índice de Gini (medidor da desigualdade, em que quanto mais próximo de 1, pior é a distribuição de renda) estava em 0,494 em novembro passado. Sem o auxílio, o indicador iria a 0,542 nas mesmas condições daquele mês.

Isso se daria porque a renda da população, em novembro, chegou a R$ 1.286, em média – patamar 5,8% maior, em termos reais, que o observado em maio, no início do pagamento das parcelas do benefício emergencial, segundo a Pnad-Covid, pesquisa feita pelo IBGE durante a pandemia, mas com metodologia diferente da Pnad Contínua.

Duque lembra que a desigualdade tinha caído em 2019 pela primeira vez desde 2014. “O saldo do ano passado, no entanto, deve empatar com o de 2019. A pandemia deve impedir a queda da desigualdade”, diz.

Com o fim do auxílio, o governo começa a discutir formas de ampliação do Bolsa Família, mas, entre os economistas, a avaliação é de que algo já deveria ter sido proposto. Pressionado para retomar o pagamento do auxílio, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ironizou na semana passada sobre a possibilidade de estender o benefício. “Se pagar R$ 5 mil por mês, ninguém trabalha mais”, disse.

“É absurdo ele dizer que não pode fazer nada”, protesta o ambulante Hudson Moreira, de 49 anos. Com câncer, ele dependia do auxílio. Sem o benefício, agora conta com a aposentadoria dos pais, enquanto espera o fim da pandemia. “Infelizmente, votei nele e me arrependo. O presidente precisa lembrar que está lidando com vidas. E a pandemia é séria, não é um resfriado.”

Acabar com o auxílio emergencial é jogar de novo essas pessoas na pobreza ou na informalidade, avalia a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Úrsula Peres. “Esse boom de recursos movimentou a economia, impedindo uma queda drástica do consumo e beneficiando as finanças estaduais e municipais.”

Na última semana, o Estadão mostrou que o governo prepara uma medida provisória (MP) para reestruturar o Bolsa Família. A perspectiva é que sejam unificados benefícios já existentes, além do reajuste de valores e a criação de bolsas por mérito. Assim, 14,5 milhões de famílias seriam contempladas, ante as atuais 14,3 milhões.

‘Dependo do Bolsa Família da ex-esposa’
Ex-morador de rua e integrante de um movimento que luta pelo direito dessa população, Anderson Lopes de Miranda, de 45 anos, pensa em utilizar o apartamento da família como garantia para acesso a crédito e “botar comida em casa”, como ele diz.

“Há mais de dez anos temos o apartamento, mas a gente vai ter de dá-lo como garantia até eu me reorganizar. O auxílio emergencial estava nos dando suporte; deu até para a gente aumentar algumas coisinhas, como a internet, mas agora vamos ter de cortar. A gente comia melhor também, mas vamos precisar reduzir tudo isso.”

No início do pagamento do auxílio, a família tinha uma renda que, se comparada com a atual, pode ser considerada bem alta. A ex-mulher de Miranda já recebia R$ 170 do Bolsa Família antes da pandemia. Por viver com as filhas de 12 e 14 anos, ela passou a receber o auxílio de R$ 1.200. Na mesma época, por ser informal, Miranda também recebia a ajuda, só que no valor de R$ 600 e repassava uma parte para a família.

Conforme o valor do benefício foi sendo reduzido, ele voltou a morar sob o mesmo teto que a ex-mulher e, agora, os mesmos R$ 170 são a única renda fixa que eles têm. “Estamos dependendo do Bolsa Família dela para sobreviver.”

‘Não acredito que coloquem nada no lugar’
“Não tem nada mais doído do que ver um filho passando necessidade”, conta Lucimar Silva, de 50 anos. Informal há quase 30 anos, demorou um mês para começar a receber o auxílio emergencial. Como é mãe solteira, ela teve direito ao benefício de R$ 1.200, dinheiro que usava para as compras do mês e pagar aluguel e as contas básicas, além dos gastos mensais com o tratamento do filho mais novo, que é autista.

Com o fim do auxílio, em dezembro, e o filho mais velho desempregado por causa da pandemia, ela teve de voltar ao trabalho na rua e passou a vender máscaras no centro do Rio. “Evito pegar condução lotada, ando sempre de máscara e com álcool em gel na bolsa. Mas o medo de ficar doente existe, claro. Perdi muitos amigos nessa pandemia e todo mundo conhece alguém que ficou doente. Agradeço por estar saudável.”

O fim do benefício emergencial pesou no orçamento de Lucimar. Com o dinheiro, ela custeava parte do tratamento para o filho, mas mesmo antes da pandemia, a família dela era uma das que estavam na fila do Bolsa Família. Sem o auxílio, ela vai voltar para a lista de espera. “O auxílio me ajudou muito, mas não acredito que coloquem nada no lugar. Só nos resta tentar sobreviver.”

Alternativa ao auxílio é remodelar programas
Com o fim do auxílio emergencial, o Bolsa Família volta a ser o principal mecanismo de transferência de renda do País. O problema é que, além de atender a um número menor de pessoas, ele já estava defasado antes mesmo da pandemia. Há inúmeras propostas sobre a mesa para substituir o auxílio, e a maioria passa pelo aperfeiçoamento de programas que existem.

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, é um dos autores do Programa de Responsabilidade Social, que visa a aprimorar a rede de proteção social. Pela proposta, é essencial saber a diferença entre dois perfis: aqueles que já são muito pobres e não conseguem se encaixar no mercado de trabalho e os que conseguem se sustentar, mas têm oscilação de renda.

“Para o primeiro grupo, é necessário o Bolsa Família. Já para o segundo, a proposta não é uma renda mínima, mas um seguro: todo mês você deposita um valor para a pessoa e, quando ela precisar, ela saca”, diz.

Já o economista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) João Romero diz que será preciso rever o teto de gastos, que limita as despesas do governo federal ao orçamento do ano anterior corrigido pela inflação. “A pandemia trouxe para o centro do debate a necessidade de reforçar mecanismos para garantir o mínimo de dignidade para a população.”

Correções
Enquanto não há uma movimentação política em direção a um esquema mais estruturado, o presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Leandro Ferreira, defende que, ao menos, o Bolsa Família seja corrigido de forma a não ter filas de espera para o programa.

Reportagem recente do Estadão apontou que a fila do programa, que paga, em média R$ 190, é estimada em cerca de 1,3 milhão de famílias. Com o fim do auxílio emergencial e alta do desemprego, a tendência é que a espera pelo benefício cresça.

“Corrigir os valores do Bolsa Família é urgente. A linha de extrema pobreza do programa, de R$ 89, faz com que muitos pobres não se enquadrem. Não precisa pagar R$ 600 para todos, mas o Bolsa Família precisa ser reajustado”, diz Ferreira.

Rogério Barbosa, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, da Universidade São Paulo (USP), avalia que uma reforma tributária mais progressiva, que taxe mais quem tem mais, será inevitável. “É mais viável um programa de renda que custe R$ 100 bilhões por ano, bem menos do que o auxílio emergencial, que chegou a custar R$ 50 bilhões por mês.”

Para Naércio Menezes Filho, do Insper, é importante que a política de transferência de renda evolua para um sistema que tenha nos jovens de até 18 anos seu público-alvo. “A renda básica deve acompanhar os brasileiros desde a primeira infância. Não é gasto, é um investimento que melhora a produtividade.”