Olimpíadas de Tóquio: Bia Ferreira leva medalha de prata

Quando Bia solta o primeiro cruzado, seu braço se estica, a irlandesa finta e Bia acerta apenas o ar. O segundo cruzado, ar. Nos trinta primeiros segundos, ar, ar e ar. Enquanto tentava achar a distância correta para a adversária, Bia pode ter feito uma reflexão, se é que numa luta como essa existe tempo para reflexões: “O que eu fiz para chegar até aqui? O que eu vou fazer para sair daqui?”

Se você refletir sobre isso, talvez chegue à conclusão que Beatriz Ferreira não tinha outro caminho na vida exceto ser lutadora de boxe. Ela nasceu quando seu pai, o lutador Raimundo Ferreira, conhecido como Sergipe, rodava o Brasil ganhando a vida tentando ficar de pé no centro do ringue.

Nas fotos desgastadas da família, Bia aparece ainda criança imitando as poses do pai, o punho do jab à frente, o do direto atrás, a guarda montada diante de um adversário imaginário, os pés formando uma base fixa no chão. As condições financeiras da família não permitiram a Bia crescer com muitos brinquedos, então ela se virava com as ferramentas de trabalho do pai. Em vez de bonecas, brincava com luvas, manoplas e equipamentos de academia.

Passava na academia a maior parte do seu tempo livre, vendo o pai e os amigos treinarem, um ambiente masculino e viril em que poucas meninas se sentiriam tão à vontade quanto ela. Até que em algum momento entre a infância e adolescência, ela decidiu que também queria ser boxeadora.

Quando faltavam meninas para treinar com ela, Bia lutava com meninos. Quando faltavam professores para lhe dar atenção, seu pai vestia as manoplas e comandava seu treino. Quando seus pais se separaram depois que a família mudou para Juiz de Fora, Bia escolheu ficar com Sergipe e jamais abandonar os treinos de boxe.

Ela cresceu admirando o pai até o dia em que virou uma atleta melhor que ele.

Quando finalmente conseguiu encaixar os primeiros golpes na irlandesa, Bia se sentiu mais confiante e ouviu sua torcida na Kokugican comemorar seu desempenho. Nos olhos de Kellie Anne havia nesse momento um misto de medo e dúvida. Ela era maior e tinha mais envergadura que a brasileira, que por sua vez era mais ágil e difícil de ser pega. No meio de uma luta de boxe, enquanto o sangue sobe e o corpo esquenta, o combustível de um pugilista é a confiança que ele ganha quando seus golpes começam a entrar.

Quando Bia acertou o primeiro, logo veio o segundo e o terceiro, e ela foi pra cima, para ganhar o round ou a talvez a luta. Mas o gongo soou, o árbitro separou as duas, e os juízes deram vitória apenas dividida para a brasileira. Seria uma luta longa. O que Beatriz faria?

Bia Ferreira chegou a Tóquio como “o alvo” a ser batido pelas adversárias. Campeã mundial e primeira colocada no ranking da categoria até 60 kg, ela tinha sido estudada à exaustão por todas as pugilistas do torneio. O boxe é um esporte de força, de técnica e também de estratégia. Quando se reuniu com seus treinadores no intervalo entre o primeiro e segundo round, ouviu novas orientações sobre a tática a seguir.

Os três tinham passado vinte horas vendo e revendo lutas de Kellie Annie nos dias que antecederam à final. De tanto a estudar, Bia acreditava que seria capaz de prever seus movimentos, desviar de seus golpes e encontrar espaço para atacar no meio da sua guarda.

Mas no segundo round, tudo começou a desandar. O boxe é um esporte de força, técnica, estratégia e também de subjetividades. Quando não há nocaute, cinco juízes espalhados em volta do ringue dão nota para o desempenho dos atletas. E nesse segundo round, apesar de Bia e seus treinadores acharem que ela conectou bons golpes e conseguiu se defender bem, os juízes pensaram o contrário.

A irlandesa Kellie Annie venceu o segundo por unanimidade e também o terceiro, e quando Bia ouviu que tinha sido derrotada na final olímpica, ela viu sua adversária se ajoelhar no centro do ringue, exatamente da mesma forma que ela faria se fosse campeã. Ela talvez fizesse uma dancinha e beijasse a bandeira do Brasil, como dançou e beijou em todas as suas vitórias em Tóquio. Ela certamente agradeceria ao pai e à mãe e a todos os brasileiros que tinham ficado até tarde para torcer por ela.

Em vez disso, Bia apenas olhou para câmera e pediu desculpas ao país. Seus amigos na arquibancada a aplaudiram e gritaram seu nome, dizendo com isso que ela não tinha por que se desculpar.

Quando Beatriz Ferreira subiu no segundo lugar mais alto do pódio alguns minutos depois e colocou sua medalha de prata no pescoço, o hino da Irlanda começou a tocar e a bandeira brasileira foi erguida abaixo apenas da irlandesa.

E assim foi o dia da pugilista que chegou aonde nenhuma outra brasileira tinha chegado antes dela.

UOL/Foto: Jonne Roriz