Cigarro eletrônico, logro à saúde pública

Marco Antonio Bessa

No início deste século, a indústria lançou um novo dispositivo para o consumo de tabaco, o chamado cigarro eletrônico ou “vape”, porque a pessoa inala e exala vapor em vez de fumaça. Foi desenvolvido pelo farmacêutico chinês Hon Lik e patenteado em 2003. A intenção era ser um substituto menos prejudicial para o cigarro.

Para as grandes empresas, no entanto, o alvo era criar novos consumidores entre os jovens de alto poder aquisitivo das populações urbanas de todo o mundo. Um produto para se contrapor à crescente queda no número de tabagistas, como resultado das fortes evidências dos malefícios provocados pelo consumo de tabaco.

No século passado, uma das principais estratégias de propaganda do cigarro foi utilizar o cinema e a televisão como meios de divulgação de um comportamento a ser imitado. Ao fumar a pessoa sentia-se elegante, charmosa e sofisticada, como os grandes astros e estrelas dos filmes mostravam-se nas telas.

Com os cigarros eletrônicos, a estratégia foi divulgar um produto de nova tecnologia com múltiplas opções de sabores e falsas promessas de não serem tóxicos, emoldurados na mesma imagem de um comportamento “descolado” e charmoso e que facilitaria a interrupção do uso de cigarros comuns. A indústria aproveitou-se de modo muito competente das novas formas de comunicação como as redes sociais para enviar mensagens personalizadas mentirosas sobre os vapes. O resultado foi que houve uma expansão do comércio e da popularidade do produto entre adolescentes e jovens.

Existem mais de 2 mil marcas comercializadas em todo o mundo, com preços que podem variar de US$ 30 a US$ 150. No Brasil, a venda, importação e propaganda é proibida desde 2009. No entanto, há contrabando e a compra pela internet é muito fácil.

Tais cigarros fornecem um aerossol que contêm nicotina e outros aditivos. Reproduzem a forma, tamanho e aparência do cigarro, charuto ou cachimbo. Alguns têm na ponta uma luz que se acende com o uso, lembrando a brasa do cigarro. Também podem assemelhar-se a objetos como lápis, canetas, batons etc. Os principais componentes são um atomizador, bateria e um compartimento para armazenar uma solução que contém nicotina em mecanismo para produzir um aerossol (propileno glicerol ou glicerol diluído em água) e alumínio.

Os materiais utilizados incluem prata, aço, metais, cerâmicas, plástico, fibras, borracha, as baterias de lítio que provocam risco de fogo e explosão, nitorasaminas específicas do tabaco relacionadas ao câncer e outros componentes orgânicos voláteis.

Os estudos científicos, em curso desde os meados do século 20, demonstraram inúmeros malefícios associados ao fumo. Os mercadores de tabaco negaram de forma veemente tais resultados, tentaram desmoralizar os cientistas e seus estudos. Mas tiveram de aceitar as medidas que os governos, em especial dos EUA e do Brasil, passaram a tomar para reduzir o consumo de tabaco, tais como controle da publicidade, idade para poder comprar o produto, restrição de locais onde se pode fumar, amplas campanhas de esclarecimento para a população sobre os graves prejuízos à saúde causados pelo fumo etc.

Na ânsia de manter fabulosos lucros, a indústria buscou novos estratégias para burlar tais controles e oculta as principais consequências do uso do cigarro eletrônico. Vejamos algumas: tosse seca, sangramento nasal, alergias, dor de cabeça, tontura, insônia, palpitação, dor torácica, irritação nos olhos, náusea, vômitos, sangramento de gengivas, gengivites, tremores, alterações na expressão dos genes dos brônquios e risco de câncer pulmonar. No entanto, existem problemas maiores: estudo de 2018 identificou que adolescentes usuários dos cigarros eletrônicos apresentam 3,63 vezes mais risco de iniciar o consumo de maconha. Outra condição grave é uma doença respiratória aguda relacionada ao vape denominada, em inglês, Evali (sigla para “E-cigarette or vaping product use associated lung injury”, ou “dano pulmonar associado ao vape ou cigarro eletrônico”). Os principais sintomas são falta de ar, tosse, dor torácica, diarreia, dor abdominal, febre, fadiga e alterações pulmonares nos exames de imagem e citopatógicos. Em dezembro de 2019, havia 2,3 mil pacientes admitidos em hospitais nos EUA e 79 mortes associadas à Evali.

Nos EUA a nova regulamentação federal instituída pela agência para controle de alimentos e drogas (FDA) determina a restrição da venda desses produtos para menores de 18 anos, requer documento com foto e não permite a venda em máquinas (exceto em ambientes exclusivos de adultos). Contudo, pesquisa recente com 10.097 alunos do equivalente ao nosso ensino médio e 288.837 do ensino fundamental relatou que 27,5% dos alunos do médio e 10,5% do fundamental são usuários atuais de cigarro eletrônico. E 72% dos alunos do ensino médio e 59% do fundamental usam cigarro eletrônico com sabores de frutas, menta ou hortelã. Outro estudo identificou o uso de vape para maconha entre 3,9% a 14%, dependendo da série.

No momento em que a Anvisa abre prazo para receber informações técnicas sobre cigarros eletrônicos (a partir de 11 de abril), urge que todas as entidades médicas e relacionadas à defesa da saúde pública, em especial à proteção de crianças e jovens, e sociedade civil unam-se em uma ampla divulgação das mentiras da indústria do tabaco sobre os benefícios do cigarro eletrônico e exerçam o necessário e incontornável direito a uma vida plena com saúde integral.

Marco Antonio Bessa é médico psiquiatria, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Paraná e chefe do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da UFPR.