Novo Marco Legal do Transporte Público e a Tarifa Zero
Zeca Dirceu
A partir deste 1º de janeiro, prefeitas e prefeitos eleitos e reeleitos vão comandar os 5.570 municípios brasileiros nos próximos quatro anos e vão enfrentar os desafios mais prementes da gestão pública que é prover e garantir o acesso pleno da população aos serviços públicos de qualidade em áreas sensíveis como a saúde, a educação e a segurança. Terão também que elencar um conjunto de prioridades para ações de governo que venham conjugar o estado de bem estar social.
Uma dessas prioridades diz respeito à mobilidade urbana e que hoje não significa apenas as obras de infraestrutura (implantar, pavimentar, ruas e avenidas, por exemplo), mas sim como diminuir e mitigar o impacto das mudanças climáticas (alagamentos, enchentes, deslizamentos, etc) e de um modal colapsado (uso de intensivo dos carros como transporte) nas cidades. Tanto um quanto outro contribuem com o aumento das ondas de calor, das chuvas intensas e frequentes e dos desastres.
Além de um plano climático, as cidades brasileiras precisam aumentar, de forma significativa, o uso do transporte público, apesar da queda do números de passageiros transportados. A Tarifa Zero, ou seja a gratuidade da passagem do ônibus, a proposta que defendo, pautou as eleições municipais em grande partes das cidades, principalmente as médias e as grandes.
No meu estado, o Paraná, a gratuidade parcial ou gradual e a redução do valor da tarifa foram propostas por candidatas e candidatos às prefeituras e câmara de vereadores, alguns deles vitoriosos nas urnas.
Acompanhei os debates e assisti a defesa da isenção da passagem de ônibus aos desempregados, aos pacientes do SUS, a volta da domingueira (caso de Curitiba) e nos finais de semana e feriados, e a extensão do passe livre aos aposentados acima de 60 anos, PcD (pessoas com deficiência) e acompanhantes, estudantes (fundamental, médio e superior), professores e trabalhadores da educação, policiais, carteiros e trabalhadores da saúde, entre categorias.
Em suma, a Tarifa Zero ganhou corpo, uma realidade de 116 cidades brasileiras. Dezesseis delas estão no Paraná, além das cidades como Araucária (redução da tarifa), Foz do Iguaçu, Londrina e Maringá (passe livre aos estudantes), e Guarapuava que pode implantar a tarifa zero depois que recebeu R$ 40 milhões do Novo PAC para renovar a frota de ônibus do transporte.
No caso do Novo PAC, os 2,3 mil ônibus previstos no programa são para veículos elétricos que além de emitirem 0% de gases de efeito estufa, têm um custo operacional de 1/3 menor do que com o uso do diesel. Curitiba recebeu R$ 380 milhões para compra de 54 ônibus elétricos, Cascavel recebeu R$ 52,7 milhões para 15 ônibus e inaugurou sua usina fotovoltaica que abastecerá os veículos.
O capital político dos gestores que implantaram a tarifa zero é grande. Hoje, 622 mil paranaenses não pagam a passagem e no país, são mais de seis milhões de brasileiros isentos do pagamento da tarifa de ônibus. O PT tem um caso emblemático: governa Maricá (RJ) há 16 anos e o deputado Quaquá volta ao comando do Município por mais quatro anos. Na cidade de 198 mil habitantes, a Tarifa Zero completou 10 anos.
Após o resultado das eleições, os pesquisadores Daniel Santini, Letícia Birchal Domingues e Roberto Andrés identificaram no TSE que a taxa de reeleição de prefeitas e prefeitos que adotaram a medida foi de 89% nas eleições de 2024. Esse porcentual pode ser maior porque a pesquisa abrangeu as cidades com menos de 200 mil moradores.
Daniel Santini escreveu o livro “Sem Catraca: da utopia à realidade da Tarifa Zero” e disse à Folha de S. Paulo que a pesquisa corrobora a percepção de que a política é um anseio popular –mesmo diante de críticas de superlotação e custos altos. “Não é medida eleitoreira, é algo com profundo caráter social”. Acrescento ainda que o dinheiro da passagem será uma economia que pode ser usada no comércio, por exemplo. Segundo o IBGE, os brasileiros destinaram em 2022, uma média de 18,1% dos seus gastos à despesas do transporte público;
Também há uma grande demanda reprimida de pessoas que não usam o transporte público porque não tem condições de arcar com as despesas. Estudo, o IBT (Instituto Brasil Transportes) apontou que 39 milhões de brasileiros usam o modal, enquanto outros 37 milhões deixaram de utilizar (principalmente pelo custo da tarifa). Num serviço eficiente, com qualidade e gratuito, esse contingente pode ser incorporado ao sistema, assim como as pessoas que vão optar por deixar seus carros em casa e optar pelo transporte público.
O Tarifa Zero ajuda a equacionar um dos maiores gargalos da vida moderna. O alto número de veículos circulando, além de previsíveis quadros de congestionamento no trânsito, também contribui para a poluição atmosférica, visto que a maioria dos veículos não possuem motores capazes de garantir uma baixa emissão de gases.
Com a diminuição de automóveis e motos nas ruas, vai cair o número de acidentes e sintomaticamente reduz e também os acidentes com traumas atendidos pelo SUS, hoje um dos maiores índices na prestação da saúde pública no país. Também reduz os custos de manutenção do pavimento de ruas e avenidas desgastados pelo uso intensivo dos veículos.
No Congresso Nacional, a Tarifa Zero também ganhou amplitude. Eu faço parte da Frente Parlamentar da Tarifa Zero que debate os projetos em curso na Câmara dos Deputados, entre eles, o da deputada Luíza Erundina (PSB-SP) que prevê a criação de um sistema único de mobilidade urbana e de um fundo nacional que pode financiar os municípios na implantação da gratuidade no modal.
No Senado, a Comissão de Infraestrutura aprovou uma proposta que pode ser reconsiderada mais ampla, embora tenha pontos que considero conflitantes e que merecem uma análise mais detalhada pelos ativistas da tarifa zero. O novo marco legal para o transporte público coletivo urbano intermunicipal, interestadual e internacional foi relatado pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) que apresentou um substitutivo ao projeto do ex-senador Antonio Anastasia, hoje ministro do Tribunal de Contas da União
Segundo Veneziamo, em vez das alterações propostas na Política Nacional de Mobilidade Urbana e no Estatuto da Cidade, o projeto reúne todas as propostas sobre modal no novo marco legal. O projeto será remetido para a Câmara dos Deputados e eu defendo que a frente parlamentar venha convocar audiências públicas nos estados e cidades para debater a proposta.
Eu conversei com professores e pesquisadores que apontam alguns avanços no projeto do Senado, além das ponderações. Quando trata de gratuidade, prevê que o benefício deve ser bancado pelo poder público. O projeto prevê ainda operações de financiamento com recursos de fundos públicos ou privados, aplicações no mercado de capitais e investimentos feitos pelas empresas contratadas para operar os serviços. Outras fontes de financiamento seriam recursos de bancos de desenvolvimento e instituições de fomento, de compensações ambientais e de fundos e programas dedicados à sustentabilidade e à adaptação às mudanças climáticas.
Conforme a proposta aprovada no Senado, a União também poderá subsidiar os sistemas de transporte por meio de programas federais de fomento; de programas sociais ou de custeio de equipamentos; e de contrapartidas ao cumprimento de metas de qualidade e eficiência, entre outros mecanismos. O projeto ainda destina ao investimento no transporte público 60% dos recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide Combustível), que incide sobre a importação e comercialização de petróleo, gás natural e álcool etílico combustível.
O projeto trata ainda de mais 11 pontos: transparência, tributos, gestão financeira, prioridades, política tarifária, diretrizes, planejamento, gestão associada, operação, direitos e devedores de passageiros e fórum de mobilidade. Este fórum, segundo a proposta, será de caráter consultivo com a participação da sociedade civil e entre suas atribuições, prestar assistência técnica e financeira aos municípios.
A proposta do novo marco legal aprovado no Senado é um avanço, mas falta a participação popular na sua elaboração – as empresas operadoras do sistema foram ouvidas e suas propostas contempladas. Quando trata dos interesses dos usuários, o texto é genérico e deve ser mais detalhado e aprofundado. De qualquer forma, assim que projeto chegar na Câmara dos Deputados, os debates e audiências públicas devem abrigar a tarifa zero, as propostas dos projetos em curso no parlamento e dirimir qualquer dúvida do projeto.
O acesso gratuito ao transporte público de qualidade tem que ser tratado como um bem universal como o direito à saúde e à educação. Na campanha eleitoral, o PT apresentou aos candidatos e candidatas uma cartilha que demonstra como a tarifa zero ajuda a melhorar a eficiência do serviço de transporte. Através de critérios de gestão bem estabelecidos, em que o modelo de remuneração dos prestadores de serviços estejam ligados à pontualidade, previsibilidade, idade da frota, quantidade de veículos disponíveis e trajetos adequados à necessidade das pessoas.
A Frente Parlamentar da Tarifa Zero tem um site (https://tarifazero.org.br/) que reúne a legislação já em vigor e as propostas em discussão no Congresso Nacional, além de apresentar estudos e depoimentos de especialistas. O colegiado também firmou uma parceria com a Universidade de Brasília (UnB) para colaborar nos estudos sobre a tarifa zero.
O Tarifa Zero chegou para ficar. Só não vê quem não quer ou que pretendem resolver, com apoio do poder público, o passivo e insolvência das operadoras de um sistema colapsado e falido, em vez de encontrar caminhos e soluções na prestação de um serviço básico com eficiência e qualidade.
Zeca Dirceu é deputado pelo PT do Paraná e titular da Comissão da Educação da Câmara dos Deputados